O culto ao bem-estar: quando o autocuidado vira prisão
Todo dia você acorda tentando ser sua melhor versão. Mas e se essa versão ideal for só mais uma armadilha disfarçada de autocuidado?
Você já teve a sensação de que está sempre devendo algo para si mesma? Que, por mais que se alimente bem, treine todos os dias, leia, medite, cuide da pele, ainda está atrás de uma versão ideal de si que nunca chega? A essa altura, talvez você já tenha percebido: o bem-estar deixou de ser um convite à saúde e virou uma exigência mascarada. E o mais perigoso disso tudo? É que agora essa cobrança vem disfarçada de liberdade.
A produtividade como religião contemporânea
Vivemos na era da produtividade tóxica, como chamam pensadores contemporâneos como Byung-Chul Han. Em Sociedade do Cansaço (2010), o filósofo sul-coreano explica que trocamos os grilhões do controle externo por uma autoexploração silenciosa.
“O indivíduo neoliberal já não é mais o sujeito da disciplina, mas o do desempenho. Ele não é mais um escravo, mas seu próprio carcereiro.”
— Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço (2010)
Não precisamos mais de um chefe gritando ordens; nós mesmos nos escravizamos com metas, checklists e rotinas “perfeitas” que se multiplicam nas redes sociais.
Não é coincidência que o wellness, o autocuidado e o “alto desempenho” tenham se transformado em símbolos de status. Você com certeza conhece alguém ( ou é a própria pessoa) que : acorda às 5 da manhã para correr 10km, fazer duas horas de devocional e treinar mais duas, mas isso não é estar apenas cuidando do corpo ou da mente , é sinalizar que pertence a uma elite moral. É o novo “ter sucesso”. E ele é, quase sempre, inalcançável.
A estética do bem-estar como moralidade
Mais do que vender produtos, o mercado vende identidades.
“As marcas não vendem mais produtos; vendem identidade, pertencimento e estilo de vida. Elas criam desejos, necessidades e até mesmo ideologias para manter os consumidores cativos.”
— Naomi Klein, No Logo (1999)
O tapete de yoga, o suplemento, o planner minimalista ou a garrafa térmica personalizada vêm sempre acompanhados da promessa de uma “nova versão de você mesma”. Só que ninguém diz que essa nova versão é, por definição, é inatingível.
A estética do autocuidado virou sinônimo de correção: emocional, física, estética e moral. Ser desorganizada, sentir-se cansada ou até mesmo não querer seguir uma rotina rígida passou a ser visto como fraqueza. E, para muitas mulheres, essa cobrança é ainda mais pesada: espera-se que sejamos belas, fortes, espirituais, organizadas, magras, bem-sucedidas, resilientes… tudo ao mesmo tempo.
Autocuidado ou autoexigência?
Audre Lorde, em um de seus ensaios mais citados (A Burst of Light, 1988), escreveu:
"Cuidar de mim mesma não é autoindulgência. É autopreservação, e isso é um ato de guerra política."
Só que o mercado entendeu o poder dessa frase e a transformou em slogan. O autocuidado, que deveria ser resistência, virou produto. Hoje, ele é vendido como performance. Você não medita para estar em paz você medita para ser mais produtiva. Você não se exercita para cuidar do seu corpo você treina para cumprir uma meta. E, no fim, o corpo, a mente e as emoções ficam exaustos.
Brain rot: o colapso com filtro bonito
Não à toa, brain rot — literalmente “apodrecimento cerebral” — foi eleita a palavra do ano pelo Oxford Dictionary. A expressão caiu no gosto da internet como um meme, mas na verdade nomeia um mal-estar real: o colapso mental mascarado de estética e humor. É o cansaço profundo que sentimos ao consumir infinitos estímulos digitais, fingindo estar bem com um matcha na mão e um vídeo de skincare na tela. A mente entulhada de conteúdos, mas vazia de presença. A gente não vive mais: a gente scrolla. E, no fundo, isso não é leveza é saturação. É o cansaço de fingir que está tudo bem. O cansaço de se performar até mesmo na hora de descansar.
E isso nos leva a uma palavra que tem sido cada vez mais falada pela Gen Z: burnout.
Burnout (substantivo) refere-se a um estado de esgotamento físico, emocional e mental causado por exposição prolongada a situações de estresse intenso, especialmente no trabalho ou em demandas pessoais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), burnout é uma síndrome resultante do “estresse crônico no trabalho que não foi administrado com sucesso”.
Mas, ao longo dos últimos anos, o burnout deixou de ser apenas uma condição clínica e virou um estilo de vida romantizado. Dormir pouco, viver com pressa, tomar café como combustível e dizer “exausta e linda” se tornaram estéticas da produtividade. O corpo não entendeu a ironia. E agora especialmente entre jovens da Gen Z se iniciou um movimento de rejeição. Nós não queremos mais performar cansaço. Queremos simplesmente sair dele.
Em 2025, as buscas por ‘digital detox ideas’ cresceram +72% e ‘digital detox vision boards’ explodiram em +273% segundo relatório do TrendyAnalytics.
A Gen Z não quer mais hackear a mente quer descansar o sistema inteiro.
A busca não é por fuga, mas por presença. A desintoxicação deixou de ser um conceito abstrato e virou prática concreta: um exorcismo cultural. Menos feed, mais tato. Menos luz azul, mais suor. O retorno ao toque, ao papel e ao corpo é um manifesto silencioso. Porque a vida real — finalmente — não precisa mais escalar.
O algoritmo quer performance, não pausa
As redes sociais reforçam esse ciclo. O algoritmo não premia quem desacelera, quem some, quem silencia. Ele quer movimento constante, posts, stories, reels, treinos, receitas, rotinas. O que é espontâneo desaparece. O que performa, viraliza. E, muitas vezes, mesmo sem perceber, você está competindo. Com outras pessoas, com versões passadas de si mesma, com um ideal que não existe.
Mas o preço é alto: ansiedade, burnout, transtornos alimentares e uma profunda desconexão com os próprios sentimentos. Estamos todos cansados mas ninguém tem tempo para parar.
A cura talvez esteja no contra-movimento
Talvez o verdadeiro autocuidado hoje seja dizer não. Desmarcar. Dormir. Comer sem culpa. Sentir raiva. Pedir ajuda. Ficar offline. Aceitar não ser produtiva o tempo todo. Ter um corpo comum. Ser uma pessoa comum. Resgatar o que Silvia Federici chamou de reencantamento do mundo devolver ao cotidiano seu valor simbólico, seu afeto, sua presença.
#Conclusão: você não precisa ser perfeita para ter paz
É hora de questionar o que nos foi vendido como bem-estar. Porque autocuidado não é vigilância disfarçada. E sucesso não precisa vir acompanhado de exaustão. Ser feliz talvez esteja mais em se permitir do que em se aperfeiçoar. Se permita sentir, parar, falhar, respirar.
O que você sente também importa. Você não é uma máquina de performance. Você é humana.
Blog escrito por : Anna Lívia Borges
Publicado originalmente na Newsletter Capsule Letter - Substak
amei demais livia!!! acho que você esta completamente certa